segunda-feira, novembro 15, 2010

Os meus irmãos...

Não tenho irmãos ou irmãs.

Nunca me interessou saber porquê, a vida tem as suas curvas e a razão das coisas muitas vezes não tem qualquer interesse. Esta questão nunca me suscitou qualquer curiosidade. Sempre gostei muito de ser filho único e não ter que partilhar os afectos e a atenção dos meus pais. E que bom foi ser neto único num dos lados da família do que um de muitos no outro. Há coisas que não se escolhem e são como são, não valendo de nada dar-lhes um mínimo de atenção porque nunca vão mudar.

Os meus irmãos sempre foram os meus amigos!

Quando era puto, tinha-os (ou tinha-o, nunca percebi bem...) na minha cabeça. Brincava horas com ele(s). Sempre me disseram que brincava muito sozinho mas nunca estava só... E das aventuras juntos surgiram conversas infindáveis sobre os mais variados assuntos, dos mais sérios aos que duravam o tempo de quase nada, até outro o substituir sem esforço. Mais velho continuámos as conversas, mais escassas e já em inglês!!! Sim, desconfio que esse meu amigo era anglo-saxónico, nunca percebi bem e o sotaque nunca o denunciou. Mas depois dos meus 10/11 anos falámos quase sempre nessa língua. Why? I don't have a clue, my dear. Hoje cada um seguiu o seu caminho e é raro encontrarmo-nos embora saiba que ele anda por aí...

E depois os amigos de carne e osso, poucos porque nunca fui muito expansivo. Restam-me uma mão cheia deles que passaram, com distinção, o teste do tempo. Mesmo sem o saberem foram e são importantes, cada um à sua maneira e no seu espaço/tempo. Nos "teen", senti falta de alguém que, sendo da minha geração, partilhasse o que fui enfrentando na minha esfera mais próxima. Tinha-me dado muito prazer, em alguns momentos, ter tido um irmão ou irmã mais velho, nem que fosse para me guiar "in the darkest moments". Talvez por isso, à época, me tenha aproximado mais de amigos que também estavam na condição de "filhos de pais divorciados".

Hoje sinto falta de estar com eles mais vezes, vão-se adiando almoços ou jantares para a próxima, porque os afazeres da vida a isso obrigam... sim, estão lá, eu sei disso mas sinto-lhes a falta, nem que seja das conversas de circunstância.
Na falta de cão, desenvencilhei-me como pude e alguns amigos serviram de gato. E não foi por aí que as coisas correram pior, antes pelo contrário. Hoje olho para os meus filhos e não me canso de pensar na sorte que têm por se terem um ao outro. Espero que, quando crescerem, possam  olhar um para o outro como o tesouro mais importante que podem ter. Pelo menos até chegar o tempo de terem filhos...

P.

quinta-feira, novembro 04, 2010

Em dias de nevoeiro...


Em dias de nevoeiro a sua memória regressa sempre a Londres.


Concretamente ao Verão de 1940 quando ali chegou pela primeira de inúmeras vezes. Naquele tempo servia como segundo marinheiro no Corte Real, um navio mercante de pavilhão português de 90 metros que fazia serviços maioritariamente entre os arquipélagos da Madeira e Açores e Portugal Continental. Nesse quente mês de Junho faziam a viagem Leixões-Liverpool, transportando conservas de sardinha e atum para uma Inglaterra cada vez mais isolada.

Em Junho desse ano Hitler, depois de derrotar categoricamente os franceses em poucas semanas de guerra total, estendera a mão à Inglaterra. Prometia-lhes Paz e o Império a troco do domínio da Europa Continental. Mas em Londres já não governava o fraco e titubeante Chamberlain. Churchill, agarrando-se a pouco mais que uma promessa de “sangue, sofrimento, suor e lágrimas” mostrou os dentes de “pitbull” aos discursos apaziguadores do líder alemão. Não haveria uma Paz de Munique outra vez… Os Nazis tinham ido longe demais para porem de joelhos uma Inglaterra que, estando perto, ficava ainda para lá do Canal da Mancha. O exército inglês, salvo “in extremis” na proeza de Dunquerque, estava de rastos, desorganizado e desarmado. Restava a poderosa Royal Navy e algumas centenas de caças da Royal Air Force para deterem o rolo compressor alemão. Este, confiante após as vitórias da Polónia, Noruega e França precisava atravessar a Mancha… desde que esses obstáculos saíssem da frente.

Voltando ao Corte Real, a algumas milhas do porto inglês deu-se uma avaria séria numa das máquinas. Tendo em conta o clima de guerra aberta e o embargo que se vivia, o Comandante José Narciso Marques Júnior decidiu aportar. Era preferível rumar a Liverpool, descarregar a preciosa carga e reparar os danos nas docas do que ficar a mercê dos temíveis submarinos alemães. É certo que havia acordo entre Portugal e as potências beligerantes para a livre circulação dos seus navios desde que a sua carga e objectivo não beneficiasse qualquer uma das partes. Embora o Corte Real estivesse bem identificado como navio de um país neutral, o seu manifesto de carga e destino colocariam poucas dúvidas aos ávidos comandantes alemães que dirigissem os seus lobos naquelas águas.

Chegados às docas inicia-se o alijar da carga. Do armador e das autoridades do porto chegam notícias pouco animadoras... Por aqueles dias a lista de navios avariados ou danificados pelo esforço de guerra era tremenda, com especial atenção para as unidades da Royal Navy cujo funcionamento era vital para manter os alemães afastados das suas costas e das rotas que, literalmente, alimentavam o esforço inglês para se manter à tona. Mesmo sem precisar de recorrer aos ingleses, eram necessárias peças que, face ao embargo, demorariam meses a estar disponíveis.

Passados alguns dias, o armador decidiu dispensar a quase totalidade da tripulação, mantendo a bordo os homens estritamente necessários para os serviços mínimos a bordo. A ideia passava por fazer regressar o comandante e os tripulantes por mar ou pelo ar para que pudessem ser colocados ao serviço de outro navio enquanto o Corte Real esperava na doca seca por ser reparado.

Mas se essa operação se apresentava demorada, fazer sair a tripulação das ilhas britânicas no auge da Batalha de Inglaterra era, no mínimo, uma tarefa heróica. Havia voos civis mas eram raros, caros e com longas listas de espera. Lisboa era naqueles dias de incerteza e medo um paraíso seguro e, lá chegado, qualquer refugiado podia pensar em deixar o Velho Continente para outras paragens longe do Inferno da guerra. O armador pediu então aos marinheiros dispensados que fossem para Londres onde a Companhia Nacional de Navegação, dona do Corte Real, tinha uma representação. Daí encontrariam uma forma de voltar a Portugal.

Assim, chegou a Londres na pior altura possível!

O nevoeiro, raro, e o fumo, imenso, vindo das docas e do East End pintavam o cenário de uma luz feérica e estranha, quase magica não fosse a sua origem os terríveis bombardeamentos da Luftwaffe. Londres era uma cidade sitiada do ar. Os bombardeamentos, de dia e de noite, não davam descanso. As sirenes tocavam com um ritmo constante, avisando da chegada eminente das máquinas voadoras alemãs que, do seu ventre de aço, cuspiam engenhos explosivos e incendiários. As baixas civis, como em Coventry ou Guernica, uns anos antes, cresciam embora o seu número fosse mitigado pelo esforço de todos em tornar difícil a tarefa dos nazis. Os serviços públicos de controlo de danos funcionaram irrepreensivelmente quando isso parecia impossível. A vida era levada com a maior normalidade possível mas sempre de forma decidida e como se tudo aquilo não passasse apenas de um mero contratempo enfrentado com desdém. Não seria pela quebra do moral inglês que os alemães venceriam esta batalha.

Nesses dias aprendera a respeitar e admirar os ingleses. Sozinhos contra Hitler, sob constante ameaça de invasão, sofrendo o racionamento de bens essenciais, enfrentavam as bombas alemãs com uma fleuma e, por incrível que parecesse, com um enorme sentido de humor. Os discursos de Churchill alimentavam a esperança quando tudo apontava para o fim. As elites davam o exemplo e sofriam com o povo o mesmo tipo de agruras e dificuldades daqueles dias. As bombas tanto caiam no East End como no Palácio de Buckingham ou nas centenárias Houses of Parliament. A Família Real, o parlamento e todos os ministérios e serviços públicos continuaram em Londres como se se vivessem calmos dias de paz

E dos ceús limpos daqueles dias quentes vinham, para além do Sol, raios de esperança. Ténues é certo, talvez fossem insuficientes no final… mas dia após dia dali, daqueles pequenos pontos negros sob o azul vinham grandes notícias… Montados nos seus corcéis voadores, os pilotos da Royal Air Force, contra todas as probabilidades, enfrentando uma Luftwaffe orgulhosa das vitórias recentes e mais poderosa em números, davam luta! Se eles conseguiam bater os alemães então… pouco a pouco percebia-se que a tão possível invasão podia ser detida. Os alemães podiam ser abatidos e empurrados para lá do mar…tal como Napoleão no seu tempo.

Não voltaria a Portugal a não ser alguns anos depois, já depois de terminada a guerra. E muitas aventuras passaria depois de se ter demitido da marinha mercante portuguesa. A lição dada pelos londrinos nesses dias era forte demais para virar a cara e voltar à pacata terra natal. Sentia que tinha que retribuir esse exemplo com o seu pequeno esforço!

Semana após semana, nesse Verão, a Inglaterra continuava de pé! As vagas de invasores cavalgavam os ceús da Velha Albion para a derrotar e voltavam cada vez mais desgastadas e abatidas sem conseguir pôr de joelhos os britânicos. Os U-Boote apertavam o garrote em torno da ilha mas fracassavam em cortar totalmente as linhas vitais para o esforço de guerra britânico. A retórica de Hitler esbarrava na combatividade de Churchill, que teimava em manter elevado o moral e mostrar a todos que “nunca na história dos conflitos humanos, tantos deveram tanto a tão poucos”.

Sim, o nevoeiro fazia-o sempre voltar a Londres e àqueles dias em que, no meio do denso fumo escuro que antecipava uma negra esperança, o mundo livre suspendeu a respiração à espera das piores notícias… que nunca chagaram! Passadas algumas semanas, quando as marés e os nevoeiros do Outono tornaram impossível a invasão, Hitler adiou a guerra em Inglaterra. O Mundo respirava novamente de alívio, pelo menos por mais alguns meses. Podiam não ter força para vencer a Alemanha nazi por si sós mas os ingleses estavam ali para o que desse e viesse. E não se renderiam até à vitória final!

P.

PS: faz por estes dias 70 anos que terminou oficialmente a Batalha de Inglaterra. Para que não se esqueça o passado, fica aqui a memória...